Culpas o vento.
Dizes que ele levou tudo o que havia em nós. Todas as coisas belas que existiram na nossa vida, na nossa relação. No nosso amor, na nossa amizade. Que não ligava ao ódio, à inveja ou à cobiça. Era natural, apenas querido. Da minha parte, era o amor mais natural que sentira por alguém. O amor mais natural, mais bonito. Os sussurros escritos em cartas, o belo perfume do pergaminho e, essencialmente, o toque. Aquele relevo que eu sentia quando passava o meu dedo branco e sensível pela tua bonita letra; quando podia, com as minhas próprias mãos, sentir as tuas a ondular por aquele pergaminho, num ritmo esfuziante, escrevendo tão bonitas declarações de amor...
O vento sopra.
As folhas ondulam ao sabor do vento e criam mini-tornados com o lixo que se acumula na floresta. O vento sopra, implacável. Mas está quente, é sufocante. O céu estava nublado e carregado de nuvens - se chovesse, não me admirava.
Avanço - testa franzida, rugas nos cantos dos olhos, ligeira dor de barriga devido ao nervosismo - para aquela casinha. Lembraste, dos momentos que recordei contigo na nossa casinha de madeira? Onde bebias o teu chá e passávamos a tarde a ler? Lembraste?
E agora, pergunto-me para onde foram parar as declarações de amor. Também se foram, com o vento? Tantas muralhas que criaste no teu coração. E tão poucos soldados que consegui reunir para as deitar abaixo, de vez!
Está tudo como da última vez : velho, triste, escuro, deprimido. Abandonaste este local há anos, mas eu continuo a frequentá-lo. Mas os anos parecem-me séculos. Sinto o teu sangue a derramar pelo chão e os teus gritos a ecoar pelas paredes escuras, agora descascadas pelos ratos. Olho para o armário. Aquele armário.
Onde estão os sussurros, por entre pingos de chuva desaparecidos? Onde estão as belas cartas de amor, por entre mãos e rasgos? Onde está o meu belo coração, por entre labaredas incandescentes desaparecido? E a minha alma, que fugiu com as andorinhas do frio?
Aquele armário está, agora, completamente destruído. Há uns tempos, estava em perfeitas condições. Hoje, as suas gavetas não têm puxador. A sua cor foi comida pelo tempo e a madeira, comida pelos bichos. Mas mais nada me interessa - o armário deixou de importar, a pintura deixou de importar, a higiene daquele local deixou de importar. Ele não me interessa mais. Este local, nada significa para mim.
Tenho muita raiva, muita tristeza em mim. Mas sinto-me feliz - irónico, não? - mas consigo sentir. É sinal que estou viva e pronta para outras. É sinal que me podem deitar abaixo enésimas vezes, que eu vou-me levantar outras enésimas. Não faz mal. O tempo passa. Tudo vai, tudo vem. Como uma bela brisa, não é? O tempo cura tudo. Isto não será excepção. Porque a ferida sara, mas a cicatriz, essa, permanece.
A minha cicatriz não está marcada na pele, nem na cabeça. Não caí da minha trotinete nem me magoei. Muito menos parti a cabeça. A realidade, é que está marcada cá dentro - não no meu coração. Esse, foi-se. Tão pouco na minha alma, há muito fugida. Mas vai estar sempre marcada na minha memória. E, por mais que eu tente poli-la, por mais que tente raspá-la ou lavá-la, ela não sai. Porque é permanente. E as belas cartas, os belos sussurros, os belos sorrisos, voaram. E doí-me o coração - há muito perdido, mas dói-me. Dói-me, porque sei que, pela enésima vez, estou sozinha. Com a Dor, outra vez. E com o Diabo. Estou tão perdida; não sei onde me encontrar a mim própria, não sei onde fui parar; nem sequer sei onde começo e acabo. Apetece-me chorar rios de tristeza, lágrimas de sangue e desatar ao pranto - infelizmente, não consigo. Sinto um desalento imenso a apoderar-se de mim. Estou, por fim, acabada.
Dou um murro na gaveta e ela, em vez de sair, entra e embate na base do armário. Atiro-a para longe; ela não me interessa. E, finalmente, vejo. A chávena de chá. A bela chávena de chá, de porcelana, com fitinhas azuis desenhadas. A saqueta de chá desapareceu. Pego na chávena. Nunca antes lhe tinha tocado. Só agora me apercebo o quão fina é a sua porcelana e que o tempo não passou por ela, como passou por mim. E lembro-me de quando a chávena estava cheia de Chá Preto. Mas agora, são tudo apenas memórias. Tudo se foi e nunca mais irá voltar.
E, sem hesitar, largo a chávena. E ela espatifa-se contra o chão de madeira, em mil bocados, impossíveis de juntar e voltar a reconstruir. E dirijo-me à porta. Sem olhar para trás, fecho-a - sem hesitar.
Não estou a tentar martirizar-te. Quem sou eu, para fazer juízos de valor? Eu não sou ninguém - sou apenas como um espírito que saiu do seu corpo em busca de melhor vida mas que falhou : continua a vaguear na Terra, à espera do seu juízo final. Sou apenas um rasto da tua memória. Sou apenas uma marca na tua vida, uma marca mais pequena que um sinal, muito mais. Uma marca da qual arrancaste o coração com as unhas, uma memória da qual arrancaste a alma - eu sou apenas mais uma, meu amor.
Não sinto nada. Não tenho sentimentos, estou triste. Sinto-me à parte, sinto que tenho medo de tudo e de todos e, quando alguém vai falar comigo, encolho-me e afasto-a. Porque eu não aguento mais isto. Não aguento mesmo. Porque me arrancaste tudo, tudo o que eu tinha de bom, e deixaste ficar o mal, que se infiltra como veneno nas minhas veias. Veias, agora, mortas. Tal como tudo o resto em mim. Deixaste-me sozinha, desprotegida, abandonada e entregue a mim própria. Mas todos deixam, não é? Todos desistem, todos baixam os braços. Mais cedo ou mais tarde, todos se vão.
Então, meu amor, continuas a achar que a culpa foi do vento?